terça-feira, 5 de abril de 2011

Um filme extremamente poético

Título original: (Il Postino)
Lançamento: 1994 (Itália)
Direção: Michael Radford
Atores: Massimo Troisi, Philippe Noiret, Maria Grazia Cucinotta, Renato Scarpa.
Duração: 109 min
Gênero: Romance
Sinopse
Por razões políticas o poeta Pablo Neruda (Philippe Noiret) se exila em uma ilha na Itália. Lá um desempregado (Massimo Troisi) quase analfabetoé contratado como carteiro extra, encarregado de cuidar da correspondência do poeta, e gradativamente entre os dois se forma uma sólida amizade.
O Carteiro e o Poeta
Da vida ordinária à vida poética
Cid de Oliveira - Astrólogo

Um filme ou qualquer outra obra de arte sempre nos indica, de algum modo, o ponto de vista pelo qual ele deve ser abordado - ou seja, seu tema, o problema que pretende tratar. No caso de O Carteiro e o Poeta, já a primeira cena mostra que o problema é a construção de uma vida pessoal, singular e verdadeira, apesar das dificuldades do tempo e do lugar.

Por isso mesmo, dizendo logo a que veio, o filme se inicia com Mario Ruopollo resfriado e deitado numa cama, onde lê um cartão postal com notícias de seus primos que vivem na América. Essa imagem inicial ilustra a perplexidade do protagonista frente às limitações impostas à sua vida pelo ambiente social onde vive. Ouve-se, enquanto isso, o barulho dos barcos dos pescadores que retornam à praia depois da pesca. Entre eles está o pai de Mário que chega em casa para comer e comenta que já é tempo dele procurar um emprego, ganhar a vida. Mário responde que tem alergia aos barcos, que sempre enjoa e, portanto, não pode ser pescador. O pai dele também reconhece essa inadequação quando afirma que ele jamais gostou de pescar. Para não deixar dúvidas quanto ao fato de Mário ser um indivíduo diferente dos outros habitantes da ilha, ele é apresentado ao espectador, logo na primeira cena do filme, exatamente como um dos poucos que sabem ler naquele lugar.

Desse modo, o personagem central da história não aceita o tipo de vida que lhe é oferecida pelo seu ambiente imediato, e sonha com outra vida possível longe dali, na América, estimulado pelo cartão postal enviado pelos primos. A ilha sugere um ambiente limitado, isolado e de poucas possibilidades (1) porque lá falta água, figuração clara da ausência no ambiente social do auxílio, apoio ou amparo necessários para a criação e geração de uma vida singular. A propósito, a primeira fala do filme dita por Mário é: - Não tem água.

Mário quer outra vida, diferente daquelas oferecidas pelos poucos modelos existentes na ilha onde se encontra. E como a vida nos é dada sem pedirmos, limitada num lugar, num tempo e ainda por fazer, só resta a ele viver a aventura de fazê-la, inventá-la.

A interrupção do fluxo da vida comum e ordinária por um fato extraordinário que impulsiona ou obriga o herói a realizar sua aventura é uma marca de toda narrativa heróica. Na nossa história esse acontecimento é a chegada de Pablo Neruda na ilha, anunciada por um jornal cinematográfico que o apresenta como o poeta amado pelas mulheres. O aparecimento do poeta muda radicalmente a vida de Mário, pois lhe propicia o exercício de inusitada profissão: carteiro particular de Neruda. Como conseqüência desse golpe de sorte, ele inicia uma vida diferente da de pescador analfabeto, o comum na ilha, e, ao mesmo tempo, ganha uma oportunidade única para descobrir qual o seu verdadeiro projeto de vida.

No entanto, a vida não é somente o que acontece ao indivíduo, mas também o que ele faz; e nada se pode fazer sem ter em vista o que se quer ser. Como a vida não está feita, nem sequer como possibilidade, o indivíduo mesmo é que tem que criar sozinho seu projeto de vida de modo coerente com suas capacidades. A vocação e as qualidades do sujeito têm, também, um papel importante no momento em que ele tiver que escolher dentre os vários projetos oferecidos pela circunstância. Mário é simples, espontâneo, curioso, estudioso (procura no mapa onde está o Chile), inteligente, emotivo, sensível, puro, honesto. E é com sua pureza, com sua honestidade e sem trair a voz espontânea de sua consciência que ele concebe e realiza sua vida nova.

Mas, a situação de Mário é muito problemática porque ele não se sente chamado por nenhum dos poucos e pobres projetos de vida oferecidos pelo seu contorno imediato. Quase dois terços do filme é permeado pela tensão entre os estereótipos de vida existentes no ambiente social da ilha e a nova vida inventada por Mário. Essa tensão é mostrada, por exemplo, nos diálogos entre Mário e o chefe do Correio que teima em chamar Neruda de poeta do povo, enquanto Mário rebate insistindo em chamá-lo de poeta do amor.

Essa maneira de Mário enxergar Neruda é muito importante para a compreensão da mensagem profunda contida no filme. Para ele Neruda é não só o poeta do amor, mas o próprio Amor, por isso ele o descreve para o Chefe do correio com esta frase:
- "... a mulher dele o chama de Amor".

Outra indicação importante é o modo como Mário pede a Neruda para autografar um livro. Depois de ensaiar o pedido por muito tempo diante do espelho, o faz espontâneo e diverso do que treinou dizendo:
- "Pode fazer uma dedicatória, Mestre?".

Ora, a motivação maior com a qual conta o indivíduo para se sentir forte e criativo durante a difícil tarefa de inventar uma vida que valha a pena é exatamente o Amor. O Amor, que sempre mobiliza e ativa a imaginação independente do modo como ele se manifeste - seja como o amor pela divindade, o amor por uma idéia, aquele apenas sensual, ou o existente numa grande paixão entre um homem e uma mulher. Inclusive, não é possível viver esse tipo de sentimento sem imaginação. A imaginação é, portanto, uma faculdade fundamental para amar, para a concepção do plano de vida e, também, para o exercício da poesia. Ela é, ainda, um pré-requisito para a ação. Se não se imagina com muita clareza o que se quer fazer não se consegue realizar nada. É verdade que muitas vezes o indivíduo pode se satisfazer com os objetos imaginados e não agir. Mas, movido por Amor é impossível que não realize algo. Está aí a vida de Mário Ruopollo que não nos deixa mentir.

Mas, antes de começar a agir é necessário que o indivíduo esteja consciente de sua situação real. Isto só acontece com Mário depois da leitura de um poema de Neruda, que trata da angústia do homem frente à vida comum.

Vou ao cinema, passo no alfaiate, mas acontece
que me sinto enrugado e entorpecido
como um cisne grande e confuso
na superfície de um oceano de fracassos e causas.
O cheiro da barbearia me desperta e grito:
Assassinato! Estou cansado de ser apenas um homem.


Observe-se que nesta cena, - onde Mário motivado pela poesia de Neruda resolve que vai ser Poeta e, portanto, inicia a invenção de uma vida singular -, está presente, sugestivamente como contraponto, um homem de vida completamente estereotipada e de atos previsíveis, o político Don Cosimo, que aparece ali, em segundo plano ao fundo, convencendo demagogicamente a viúva Dona Rosa a votar nele.

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