quarta-feira, 15 de agosto de 2012
Memórias Póstumas de Brás Cubas
Nesta história narrada em primeira pessoa, por um defunto autor, Machado de Assis nos mostra através da pretensa superioridade de seu protagonista - Brás Cubas - a precariedade da espécie humana.
1. Narrador
Os romances de Machado escondem várias armadilhas ao longo do processo de leitura, especialmente quando se trata de um leitor romântico, acostumado a confiar sem questionamento na onisciência do narrador - nas narrações em terceira pessoa - e na sua autoridade como testemunha ocular da história contada, no caso específico das narrações em primeira pessoa.
Memórias póstumas de Brás Cubas pertence a este caso, isto é, tem a narração em primeira pessoa; o foco narrativo centraliza-se no personagem-narrador, tornando-se difícil, assim, recusarmo-nos a crer no que conta.
Entretanto, uma das chaves para a leitura deste grandioso romance está justamente em desconfiarmos do narrador. Ao colocarmos em dúvida a veracidade do ato narrativo, começaremos a entender a estrutura do romance. Vejamos por quê: de um lado é um defunto autor, que conta a história de sua vida do além-túmulo, e assim dá a impressão de máxima isenção, de uma imparcialidade absoluta. De outro lado, simultaneamente, vai espalhando pelo texto algumas pistas que denunciam suas mentiras e seus exageros.
Vamos analisar, sob este aspecto, as partes iniciais dos capítulos I e II.
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a Segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo, Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma Sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia - penetrava um chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa ideia do discurso que proferiu à beira de minha cova: - "Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que têm honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul com um crepe fúnereo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à Natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei.
[cap. I - Óbito do autor]
Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volitam que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.
Essa ideia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que sou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me argúam esse defeito: fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; do outro lado sede de nomeada. Digamos: - amor da glória.
[cap. II - O emplasto]
Os exageros e mentiras do narrador estão bem claros nestes trechos. A invenção de um remédio que curaria todos os males, uma espécie de panaceia universal, o seu "Emplasto Brás Cubas", é evidentemente uma mentira bem colocada. Mesmo partindo de um morto que está narrando sua história, esta afirmação não pode ser aceitável, na medida em que o que a move é o lucro, a sede de nomeada, o amor da glória, até a filantropia, pouco convincente em relação aos outros motivos, nenhum deles, entretanto, ligados a qualquer preocupação e/ou formação científica.
Este exemplo mostra que a pista que nos revela Brás Cubas como mentiroso já está colocada por ele mesmo nos primeiros capítulos.
Ao leitor, resta, então, a tarefa de manter-se constantemente atento, percebendo os momentos em que a narração cai nos exageros, nas invenções e nas mentiras. Podemos surpreender o narrador, várias vezes, no difícil trabalho de encobrir uma verdade, uma fraqueza, que ele, sem querer, acabou revelando ao leitor.
Quando fala de seu enterro, no capítulo I, ele diz ter sido acompanhado ao cemitério por onze amigos. Este é um féretro um tanto íntimo para quem, algumas linhas atrás, equiparou-se a Moisés. Parece que, ao notar que revelou sua falta de importância ao leitor, tenta escondê-la. Para justificar a ausência de mais amigos, inventa desculpas, não houve anúncios de morte e, ainda, chovia [ou garoava, como ele mesmo confessa] durante o enterro. Temos então uma pessoa que se acha muito importante, mas ninguém fica sabendo de sua morte a não ser que seja avisado.
Através deste exemplo, verificamos que se trata de um narrador narcisista, inclusive pela petulância com que se coloca em posição de superioridade perante o leitor. É assim que, no prólogo do romance, confessa não ter muita importância, que talvez seja lido por cinco leitores. E vai além, dizendo, aos que gostarem do livro, que é sorte de quem o lê; se não gostarem, lhes dá um "piparote" [pancada com o nó do dedo].
Brás Cubas conta a sua história através de uma postura irônica, o que exige que leiamos o romance percebendo o avesso das palavras nele escritas. Assim, podemos descobrir a forma pela qual esconde a verdade de uma trajetória inglória, dando-lhe sempre um tom de superioridade, criando uma espécie de "jogo" com o leitor.
Este jogo, fundamentalmente baseado na ironia, afasta as Memórias póstumas da típica narração realista, cujo caráter documental, fotográfico, racionalista não combina com a situação fantástica de um morto que conta histórias, extrapolando a verossimilhança dos fatos, exagerando, falseando e algumas vezes agredindo frontalmente o leitor.
Por outro lado, se não é um tradicional narrador realista, por certo Brás Cubas é um narrador realístico, na medida em que o desvendamento de suas ironias permite-nos reconhecê-lo imperfeito e contraditório.
Em conclusão, o romance, como de resto toda a obra de Machado de Assis, tem um realismo peculiar, que se aprofunda no mergulho da busca do real, indo além das aparências, que desde o foco narrativo desafia a percepção do leitor pela "não confiabilidade" do ato narrativo.
É importante, então, distinguirmos o específico do narrador desta obra em relação aos narradores realistas. Enquanto estes pretendem contar de maneira realista, objetiva, e imparcial, aquele, com a ironia crítica de que se utiliza, coloca em !xeque" tal objetividade, ao denunciar em si mesmo as imperfeições e as fraquezas humanas que normalmente tentamos esconder.
2. Enredo
Sempre lembrando que Brás Cubas é um narrador de ótica própria, que deforma a história, vamos conhecê-la em alguns episódios significativos.
No capítulo XI do romance - o menino é o pai do homem - Brás Cubas relata sua infância: cresci, naturalmente, como crescem as magnólias e os gatos. Entretanto, tal "naturalidade" é negada pelo próprio narrador, segundo o qual talvez os gatos são menos matreiros e, com certeza, as magnólias são menos inquietas do que eu era na minha infância.
O menino matreiro e inquieto, merecedor do apelido de menino diabo, maltrata os escravos, mente, esconde os chapéus das visitas, coloca rabos de papel em pessoas graves, puxa cabelos, dá beliscões, enfim, possui um comportamento maligno contando invariavelmente com a cumplicidade do pai e as orações inúteis da mãe. Sim, meu pai adorava-me. Minha mãe era uma senhora fraca, de pouco cérebro e muito coração, assás crédula, informa-nos Brás Cubas. O tio cônego também não obtém resultados quando critica esta educação baseada na superproteção paterna e na omissão materna.
A mediocridade e a frouxidão do tio cônego, que entretanto, tinha virtudes exemplares, contrapõe-se à vida galante, à língua solta e às obscenidades do tio João, que tal como o pai mima o menino, ensinando-lhe muitas anedotas e malícias e, assim, conseguindo a sua preferência.
Brás Cubas desenvolve-se neste contexto familiar que lhe favorece e justifica as traquinagens, e que prenuncia o adulto egocêntrico em que se transforma, como ele mesmo reconhece irônica e criticamente em relação à própria educação, no capítulo mencionado.
Na juventude, envolve-se com Marcela, uma cortesã espanhola por quem se apaixona mas que o ama durante quinze meses e onze contos de réis. Quando o pai toma conhecimento dos gastos do filho, manda-o à Europa para estudos aos quais pouco se dedica. Ao retornar, Brás Cubas almeja casar-se com Virgília, num negócio arranjado pelo pai, também preocupado em torná-lo deputado.
Ambos os projetos falham: Brás Cubas perde a noiva e o cargo para Lobo Neves. Mais Tarde, quando suas intenções são de ser ministro, o que consegue é o amor adúltero de Virgília e, em vez do ministério, o cargo de deputado. Virgília engravida, mas o filho dela e de Brás Cubas morre antes de nascer, o que separa os amantes.
Nhã-loló [Eulália], a noiva arranjada pela irmã - Sabina - morre vitimada por uma epidemia e Quincas Borba, seu colega de infância que se diz filósofo., rouba-lhe o relógio e desaparece. Retorna tempos depois, enriquecido por uma herança, devolve o relógio e mais tarde enlouquece.
Assim, de fracasso em fracasso se conduz a travessia de Brás Cubas, personagem-símbolo da ironia machadiana quanto ao ideal burguês de "vencer na vida ", especialmente percebida através do humanitismo: teoria filosófica criada por Quincas Borba.
Inventar um emplasto contra a hipocondria, um remédio miraculoso que curaria os males da humanidade, constitui a última tentativa de Brás Cubas, o seu último projeto - sem sucesso como todos os outros - ironicamente impedido pela morte do protagonista, que contrai pneumonia ao sair de casa a fim de patentear o invento.
3. Personagens
Principal
Brás Cubas - protagonista e narrador do romance - egoísta, egocêntrico, entediado e como vimos petulante, irônico, pretensamente superior, constitui uma espécie de inversão feita por Machado de Assis da trajetória típica dos heróis do mundo burguês, tematizados na literatura realista. Tais heróis, como por exemplo nos romances de Stendhal e Balzac, caracterizam-se pela ascensão social geralmente relativizada pelo fracasso no plano afetivo. Brás Cubas, por sua vez, não tem sucesso em nenhum setor, tornando-se uma espécie de antimodelo através do qual Machado de Assis ironiza impiedosa e ceticamente os valores burgueses em particular e os valores humanos em geral. Além disso, questiona os modelos ideológicos e literários importados pelo Brasil, fazendo-o não só através da negação do herói tradicional da literatura realista, mas também da ridicularização das doutrinas positivistas e deterministas, através do humanitismo e de seu criador, o filósofo-maluco Quincas Borba.
Secundários
Pela ótica demolidora e narcisista de Brás Cubas, vamos comentar os personagens secundários do romance, vistos no que representam para o protagonista e narrador.
Marcela, sua primeira paixão, é descrita como uma cortesã interesseira que acaba sendo atacada pela varíola. Brás Cubas parece sentir um prazer mórbido na descrição das marcas no rosto da espanhola. Sua descrição da personagem assemelha-se, assim, a uma vingança, sugerindo ao leitor que mesmo os raros que conseguem enganá-lo são castigados até pelo destino.
O homem que lhe toma a noiva e o mandato de deputado _ Lobo Neves - aparece como um supersticioso inconsequente. O cunhado Cotrim, com quem tivera que repartir a herança do pai, aos olhos do narrador é submisso aos poderosos e interesseiro. Um dos raros amigos que tem, Quincas Borba, é retratado inicialmente como um mendigo ladrão de relógios e depois como um filósofo doido.
Uma das poucas personagens que não lhe merecem palavras azedas é Virgília, embora seja retratada como uma mulher fraca, submissa ao destino e, assim, a ele também. Neste sentido, o egocêntrico Brás Cubas sente-se tão forte quanto o destino. O fato de que Virgília se torna sua amante é usado por Brás Cubas para disfarçar a frustração que teve com a primeira derrota, quando iria casar-se com ela. É como se dissesse ao leitor que Virgília estava fadada a ser sua, que nada pode se opor aos seus desejos e, mais cedo ou mais tarde, ele os acaba concretizando.
4. Linguagem
Para tornar mais funcional o nosso trabalho de análise da linguagem deste romance indicado pela UCS, vamos dividi-lo em itens representativos de seus elementos mais importantes.
Conversa com o leitor
Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse: eu não tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica: vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...
E caem! - Folhas misérrimas do meu cipreste, heis de cair, como quaisquer outras belas vistosas; e, se eu tivesse olhos, dar-vos-ia uma lágrima de saudade. Esta é a grande vantagem da morte, que, se não deixa boca para ir, também não deixa olhos para chorar...Heis de cair.
[cap. LXXI - O senão do livro]
Neste trecho, como em vários outros, o narrador dirige-se ao leitor e, de um modo sarcástico e até agressivo, faz comentários sobre a sua escrita. Aqui, fala sobre as expectativas do leitor e sobre a sua própria linguagem, acentuando as diferenças entre ambas.
O leitor da época, consumidor do folhetim romântico, é criticado: exige-se dele uma leitura mais pausada e mais crítica, não preocupada com a mera sucessão dos fatos, mas atenta aos pequenos detalhes que compõem a narrativa machadiana.
Essas reflexões aproximam a obra do escritor das inquietações da literatura moderna. Em Machado, como atualmente, é essencial entender as reflexões do narrador à luz do próprio texto, comparando o que ele fala com o que ele faz. Nas Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado insiste na leitura mais realista, fornecendo ao leitor as pistas para ele leia no romance não apenas a história de alguém que está morto, mas a própria tragédia do homem diante de si mesmo e que ainda assim não consegue se olhar com honestidade.
A narração fragmentária
A narração fragmentária de Machado convida o leitor participação, exigindo dele um esforço organizador. Além dos detalhes que compões a coerência da obra, a própria sequência narrativa deve ser costurada. Há capítulos que explicam ou exemplificam um outro. Este pode vir tanto antes quanto depois daqueles, e o leitor é o responsável por organizá-los coerentemente.
Assim como exemplo, podemos discutir o capítulo XXXI, em que Brás Cubas conta uma pequena história acerca de uma borboleta preta. Aparentemente, este episódio não tem nada a ver com o que se conta da própria vida do narrador. Mas é só aparentemente. A história da borboleta pode ser vista como uma alegoria: os seres mais fracos [entenda-se os animais] são usados e destruídos pelos mais fortes [leia-se o homem]. Acontece que, neste tempo, Brás Cubas tentava se aproveitar de Eugênia, uma moça pobre, um tanto bonita, mas manca. A alegoria da borboleta ajusta-se perfeitamente ao caso: os mais fortes [leia-se "ricos"] podem usar os mais fracos [leia-se "pobres", o Bondan]. Mas a incompetência de Brás Cubas é tanta que ele não consegue realizar seus propósitos.
Há outros casos, em que a fragmentação do texto é mais radical, como o capítulo LV [ O velho diálogo de Adão e Eva] e o capítulo CXXXIX [De como não fui ministro dEstado]. Ambos são totalmente compostos de sinais de pontuação, deixando a cargo do leitor completar o espaço vazio de palavras, mas sugestivo de ideias, várias delas, aliás, presentes nos capítulos precedentes. Esta fragmentação do ato de narrar, aliada à quebra da linearidade do enredo, é outra técnica literária moderna anunciada no século XIX por Machado de Assis.
O duplo sentido irônico
Há um segundo sentido em relação à aparência, que se revela aos poucos, pelos detalhes que o leitor vai percebendo.
Uma passagem sutil em Memórias póstumas de Brás Cubas ilustra o duplo sentido irônico: os pais de Brás Cubas dão uma festa para comemorar a queda de Napoleão, na França. Os convidados comentam a questão, uns colocando-se a favor, outros contra. No meio da festa, dois deles trocam informações sobre uma partida de escravos que estavam para chegar ao porto nos próximos dias. Revela-se aí justamente a face hipócrita e envergonhada de nossa classe dominante. Os convivas estavam se comportando como "verdadeiros" europeus, até que dois deles se esquecem de continuar representando os seus papéis. De refinados e progressistas adeptos do capitalismo moderno, eles se mostram senhores de escravos, defensores de uma ordem social tão injustiça quanto atrasada. A ironia desse episódio está justamente no descompasso entre uma festa europeia e um diálogo brasileiro demais...
Humor e pessimismo
O "humor fino", caracterizado como "britânico", é quase um lugar-comum na análise da obra de Machado de Assis. É possível identificá-lo, por exemplo, no episódio da festa napoleônica em que, em vez de fotografia realista, reveladora da aparência, faz uma radiografia dos fatos, ao mesmo tempo repleta de humor e de pessimismo.
Ao humor obviamente percebido na revelação do descompasso, a qual denuncia simultaneamente a indigência de nossa oligarquia rural e a sua hipocrisia em desconhecer a si própria - atrelada que estava à cultura e às ideias do liberalismo europeu - soma-se o pessimismo machadiano, que perceberemos em toda a sua extensão, através da análise de um fragmento do último capítulo do romance, sugestivamente intitulado Das negativas.
Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado destas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto [...]. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e consequentemente que sai quite com a vida. E imaginará mal, porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa neste capítulo de negativas: não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.
Ao se referir ao último capítulo do livro que escreve, o narrador inicialmente faz uma afirmação - Este capítulo é todo de negativas - para em seguida demonstrá-la, fundamentá-la, através de fatos-exemplos: Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento.
Além de enumerar os motivos, as causas das negativas que percebemos se referirem à vida, uma vida de fracassos tanto no plano profissional quanto no plano afetivo, o narrador ironiza tais fracassos mostrando que se por um lado houve faltas de sua parte por outro coube-lhe a boa fortuna de não comprar o pão com o suor de seu rosto...
Ou seja, não venceu mas em compensação não lutou, isto é, não fez o "jogo" do sistema, não obedeceu às regras do mundo burguês segundo as quais o trabalho - comprar o pão com o suor do rosto - dignifica e enobrece o homem.
O enfoque irônico, crítico, presente neste trecho, intensifica-se profundamente no final: a "lei das compensações" de que se utiliza o narrador pode dar ao leitor uma impressão de "empate", de que ele saiu quite com a vida. Impressão errônea, na medidas em que "do outro lado do mistério", isto é, da perspectiva do além-túmulo, o narrador descobre que tem pequeno "saldo" perante a vida. Este saldo, paradoxalmente, corresponde à derradeiras negativa do capítulo de negativas: Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.
Vingando-se da vida através da recusa a seu principal valor - a continuação da espécie humana - e passando da primeira pessoa do singular [não tive] para a primeira pessoa do plural [nossa miséria], o narrador estende a todos os homens a sua miséria, o que a universaliza. Na realidade é o que o leitor pode pressentir desde o início do romance: Brás Cubas não é "qualquer pessoa" mas a síntese de muitas, se não de todas as pessoas, cujos fracassos não-assumidos e escamoteados Machado de Assis analisa com rara capacidade de penetração psicológica.
Observações:
1. No capítulo I de Memórias póstumas de Brás Cubas, o narrador compara seu romance ao Pentateuco, de Moisés. Qual o sentido dessa comparação?
Nesse caso, trata-se de uma estratégia irônica que revela o narcisismo do narrador. Ele se mostra tão importante e confiável quanto o personagem bíblico. Com isso, suas memórias pretensamente passam a gozar da mesma respeitabilidade do texto bíblico.
2. Brás Cubas se intitula defunto autor e não autor defunto. Explique essa inversão e discuta como se relaciona com a estética realista.
Ele diz ser um morto que virou autor e não um autor que acabou morrendo. Como morto que se tornou autor insinua fazer sua narração sem interesses e imparcialmente, como pretendiam os escritores realistas, mas vemos que deforma os fatos, omite o que lhe interessa, criando outro tipo de Realismo.
3. Que relação podemos perceber entre Brás Cubas e Quincas Borba, personagens do romance Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis?
Brás Cubas e Quincas Borba são antimodelos de heróis convencionais, na medida em que ambos "fracassaram" na vida: o primeiro não realizando nenhuma das tentativas de "dar certo" ironicamente narradas por ele mesmo na obra e o segundo criando o humanitismo - sátira de Machado de Assis às doutrinas positivistas e deterministas - e enlouquecendo. Ambos, então, constituem exemplos da inversão da trajetória típica dos heróis no mundo burguês, embora a impotência de Brás Cubas seja essencial para compreendermos o romance que Quincas Borba é apenas um personagem secundário.
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